I — Da Nostalgia ao Regresso
Sou natural de Arganil, de uma pequena povoação junto à estrada nacional que liga Arganil a Côja. Foi aí que vivi até aos dezoito anos, altura em que completei o ensino secundário e comecei a estudar na universidade. Apesar de crescer rodeada de serras, árvores e campos de cultivo, a minha educação – e, de uma forma geral, a da maioria dos meus colegas de escola, sempre se orientou para o que estava fora. Estudávamos para entrar na universidade e, logo que pudéssemos, mudávamo-nos para uma grande cidade onde acabávamos por nos estabelecer. Eu, como a maioria dos meus colegas dessa altura, fiz isso mesmo: fui saltando de cidade em cidade, cada vez mais a Norte e mais longe de casa.
Em outubro de 2017, quando o meu concelho começou a arder de forma brutal, estava na Suíça (tinha lá chegado cerca de um mês antes para estudar durante um ano). Como muitos outros amigos e familiares que também estavam fora, estive cerca de dois dias sem notícias dos meus pais. Acabei por saber que a nossa casa, a dos nossos familiares mais próximos e a aldeia dos meus avós tinham saído ilesas, mas a maior parte de tudo o resto não. Poucos meses depois, voltei para passar o Natal com a minha família e o que encontrei foram quilómetros e quilómetros de uma enorme ferida aberta, um território inteiro em luto.
Em janeiro, quando regressei a Lucerna, levei comigo uma angústia persistente por saber que já não me seria possível regressar a “casa” (às serras onde cresci) — ela já não existia, apenas a imagem transfigurada do que tinha sido. As minhas saudades dessa “casa” intensificaram-se e foram-se transformando noutras coisas – a certeza da perda impelia-me a restabelecer uma ligação com o território há muito ausente. Foi nessa altura que comecei a pesquisar sobre palavras/conceitos como nostalgia, exílio e luto, e acabei por encontrar algum conforto na construção de Nostalgia – performance interdisciplinar com a qual concluí o meu mestrado. A performance combinava o resultado de experimentações com voz, notação gráfica e improvisação conceptual que tinha feito ao longo de cerca de dois anos de pesquisa, num exercício de materialização de um conjunto diverso e multidisciplinar de experiências. Mas, acima de tudo, respondia à ânsia de prestar luto pelas perdas causadas pelos incêndios, procurando construir um retrato da efeméride.



Vários fatores ditaram que não regressasse a Nostalgia depois da sua estreia, em novembro de 2018. Continuava, no entanto, presente a ânsia de revisitar as memórias e os lugares transformados pelo fogo. A aproximação ao território potenciada por Nostalgia ainda não era, para mim, suficiente. Foi por essa razão que, em inícios de 2019, comecei a pensar num novo projeto que tivesse na sua génese justamente a ideia do acto de regressar.
Retorno surgiu, assim, como uma forma de poder refletir, com um maior distanciamento, sobre o que se perdeu, o que ficou e o que mudou. Mas, também, de poder cumprir um circuito de apresentações pelas zonas afetadas, entre Arganil e os concelhos vizinhos, prestando homenagem de forma descentralizada a todas as vítimas.
É em meados de maio de 2019 que começo, em conjunto com a Eva Sulai, com quem tinha formado no ano anterior o ensemble Ruby the Grap!, a pensá-lo como um trabalho interdisciplinar em que a performance musical se relacionaria com uma vídeo-instalação, ambas construídas em contexto de residência, mutuamente independentes, isto é, que tanto poderiam coexistir como existir em separado.
O primeiro momento de residência aconteceu poucos meses mais tarde, entre 29 de julho e 4 de agosto, no espaço da Escola-Estúdio da Associação RAIZVANGUARDA, na aldeia de Bordeiro, concelho de Góis. A par do trabalho de laboratório na Escola-Estúdio, percorremos — eu e a Eva – várias aldeias, conversámos com muitas pessoas e refletimos bastante sobre o que ouvimos e vimos. Foi a partir deste primeiro exercício que criámos os primeiros esboços daquela que imaginávamos ser a materialização do projeto, nomeadamente no que dizia respeito à relação entre música, vídeo e espaço e aos recursos sonoros que nos interessava utilizar. Também foi durante essa semana que fizemos os primeiros contactos com o João Valentim, pessoa que convidámos para nos acompanhar no projeto e que viria, a partir daí, a assumir a realização da componente de vídeo do projeto.




Estabeleceu-se, a partir dessa altura, uma comunicação regular e contínua, à distância, tanto entre mim e a Eva como entre nós os três, que só foi interrompida em março de 2020 com o início da pandemia. Eu e a Eva já tínhamos experimentado trabalhar em processos de criação à distância pois, apesar do meu regresso a Portugal em 2018, havíamos decidido continuar a colaborar enquanto ensemble. Retorno seria, assim, desenvolvido, à semelhança de projetos anteriores, num formato híbrido de correspondência semanal/ quinzenal, via e-mail e videochamada, intercalado com três residências presenciais, duas curtas (a primeira – a que já referi; a segunda – em fevereiro, em Lucerna, Suíça) e uma última mais longa (em julho de 2020, em Arganil), imediatamente anterior à estreia e circulação da performance final. Em paralelo, o Valentim desenvolveria, com o meu apoio, o seu trabalho específico de pesquisa e captação de vídeo no território
Foi nesta lógica de colaboração que fomos, os três, definindo os limites do trabalho a que nos propúnhamos (a partir do debate, da reflexão partilhada, da troca de referências) enquanto descobríamos formas de articular as nossas diferentes perspetivas sobre o território: a de alguém natural da região, a de alguém que, ainda que do mesmo país, vinha de um lugar com características muito diferentes, e a de alguém que chegava de fora.
II — Reconstrução
Em março de 2020, a cerca de 4 meses da data que havíamos previsto para a estreia de Retorno, a COVID-19 chega à Europa. Em Portugal, o confinamento teve início poucos dias depois de terminarmos – eu e a Eva – a nossa segunda residência. Começou, aqui, a fase mais desafiante do projeto, marcada por contínuos cancelamentos, recalendarizações e reestruturações. O panorama de incerteza era geral, e trazia-nos a dificuldade acrescida de gerir a entrada e a saída de Portugal da Eva, na altura residente na Suíça e, mais tarde, no Canadá.
Apesar dos constrangimentos logísticos e de produção que iam surgindo quase de semana a semana, continuávamos convictos da importância de cumprir o circuito de apresentações inicialmente previsto. Foi, em grande parte, por essa razão que não desistimos do formato presencial, ainda que estivéssemos conscientes de que seriam inevitáveis algumas adaptações. Foi seguindo este princípio que, em junho – altura em que se encarava o verão de 2020 com algum otimismo – começámos a planear as filmagens no território, bem como a residência final que concluiria o processo de criação e a estreia da performance final para os meses de julho, agosto e setembro.
Nesta fase, tínhamos já reconsiderado alguns aspetos importantes acerca da componente de vídeo e do modo como ela iria interagir com a música. Tínhamos abandonado o formato de vídeo-instalação pelas evidentes dificuldades que ele nos ofereceria num contexto carregado de restrições à circulação, em espaços fechados, de público e intérpretes. Começávamos a afastar-nos de uma estética abstrata/ sensorial (que tínhamos imaginado inicialmente) para nos aproximarmos de uma mais documental, mais focada na realidade apresentada. A ideia de que a performance musical e a componente de vídeo interagiriam sem prescindirem da sua independência perdia força face a uma perspetiva mais integrada dos vários elementos que iriam integrar a performance final (música tocada em tempo real, sons pré-gravados, projeção vídeo, espaço e objetos simultaneamente sonoros e cenográficos).
Em julho, eu e o Valentim iniciámos o trabalho de registo de vídeo e som no território. Durante vários dias, entre os meses de julho e agosto, percorremos grande parte do concelho de Arganil com o propósito de observar, escutar e registar vestígios, memórias e testemunhos da efeméride dos incêndios. Visitámos áreas e aldeias onde o fogo não chegou e muitas outras que, infelizmente, não tiveram a mesma sorte. Captámos paisagens visuais e sonoras e conversámos com os habitantes procurando melhor compreender o que se perdeu e o que foi possível, desde então, re-perspetivar e alterar. Entrevistámos pessoas com diferentes tipos de relação com a floresta (desde técnica e socio-económica até de fruição), muitas das quais, tendo perdido as suas casas, as suas pequenas culturas ou animais, vítimas diretas dos incêndios. Ouvimos e registámos as suas histórias, inquietações e visões sobre (e para) o futuro do território.




É a meio do processo de registo de vídeo e som que nos deparamos com uma nova reviravolta no projeto. Mais uma vez, as restrições impostas pela pandemia comprometem a vinda da Eva a Portugal impossibilitando a realização da residência final de criação e obrigando ao cancelamento da estreia entretanto programada para o dia 4 de setembro (2020).
É, assim, com a certeza de uma nova recalendarização à vista, e receando interromper novamente o trabalho colaborativo, que decidimos experimentar um formato de residência à distância. Apesar de, como rapidamente concluímos, não substituir o trabalho que prevíamos desenvolver presencialmente nessa altura, a verdade é que esta modalidade nos estimulou a procurar novas alternativas de criação, expandindo as possibilidades de colaboração que tínhamos ao dispor – que, até aí, se baseavam, essencialmente, em discussões/reflexões sobre questões conceptuais do projeto e em trabalho individual de criação de materiais para serem experimentados em contexto de residência.
Uma das soluções interessantes que surgem nesta altura é a sound library, construída por mim e pela Eva para servir de base à criação dos esboços de música: um catálogo de sons organizado por categorias relacionadas com o universo conceptual e referencial já existente em torno do projeto, composto por samples dos nossos instrumentos – o eufónio e o acordeão, respetivamente.
Chegando o fim do verão, retomámos o modelo de trabalho à distância que tínhamos seguido até meados de junho. Discutimos muito sobre a necessidade de repensar o formato do projeto, chegando a cerca de 10 possibilidades diferentes de seguir em frente, algumas das quais envolvendo performances híbridas (simultaneamente presenciais e virtuais). É nesta fase que fazemos as primeiras experiências de interação entre música e vídeo e que decidimos organizar o trabalho em três diferentes módulos temáticos, ou “capítulos” como lhes chamámos internamente: território, histórias do fogo e perspectivas sobre (e para) o futuro.
III — Por quem resiste
Chegáramos a janeiro de 2021, a 3 meses de iniciarmos o segundo ano do projeto, àquele que viria a ser um dos meses mais difíceis da pandemia em Portugal. A impossibilidade de prever qual seria o contexto pandémico nessa altura tinha-nos levado a recalendarizar a residência final, estreia e circulação pelos municípios de Arganil, Góis, Tábua, Pampilhosa da Serra, Oliveira do Hospital e Coimbra, para janeiro e inícios de fevereiro. Tínhamos optado, mais uma vez, por não desistir do formato presencial, muito pela convicção que mantínhamos na pertinência do formato de circulação de uma performance física.
Imaginarão facilmente que nenhum dos planos que tínhamos projetado para esses dois meses se pôde cumprir. O cansaço e o desânimo que já sentíamos nessa altura obrigou-nos a aceitar que, infelizmente, a conclusão do projeto não seria, num futuro mais ou menos próximo, compatível com o formato que vínhamos a tentar concretizar há mais de um ano.
É aqui que tem lugar a maior reestruturação do projeto: a Eva termina a sua colaboração no processo de criação e a direção artística fica dividida entre mim e o João Valentim. O Tiago Candal, que já estava envolvido no projeto enquanto designer e técnico de som, e a Inês Malheiro, ambos/as residentes no Porto, onde também eu resido, são convidados/as a integrar a equipa, colaborando na criação musical.
Para além da reestruturação da equipa, também o formato acabou por sofrer várias alterações: passámos a priorizar a construção de um objeto digital que, não deixando de cumprir os objetivos a que nos tínhamos proposto inicialmente, nos trouxesse uma maior segurança na conclusão do projeto, independentemente das contingências que a pandemia viesse a impor. A possibilidade de concretizar uma ou mais apresentações físicas seria, assim, bem-vinda, mas não indispensável.
O modelo de trabalho passou também a ser diferente, uma vez que, a partir do mês de março, pudemos – eu, a Inês e o Tiago – iniciar as nossas sessões de experimentação e criação musical no Porto, num registo presencial e regular. O trabalho de criação musical passou, assim, a desenvolver-se em paralelo com o de construção da componente de vídeo, e ambos se foram interseccionando em momentos específicos, como o da residência que fizemos em Arganil entre os dias 30 de maio e 4 de junho.
A residência, a par de marcar o primeiro contacto direto entre os dois processos de criação, foi também momento para: definir estratégias para a composição final da música, que, decidimos então, seria concluída a partir dos materiais gravados durante essa semana; experimentar possibilidades de adaptação de algumas das nossas propostas iniciais, tanto de integração do espaço como de diferentes elementos cenográficos, no objeto performativo final.
Por esta altura, eu e o Valentim estudávamos e testávamos a utilização de dispositivos analógicos como televisões, plasmas e projeção de vídeo na tentativa de preservar um lado performativo/ interativo que estivera presente na ideia inicial do projeto e que, acreditávamos, traria outras possibilidades de envolvimento do espetador. Estávamos convictos de que estes mecanismos ser-nos-iam úteis na construção do nosso objeto artístico — pela sua natureza essencialmente audiovisual, e, por isso, inevitavelmente mais próxima dos formatos de tela do que do palco. Embora acabássemos por abandonar esta ideia algumas semanas mais tarde, o trabalho desenvolvido durante a semana de residência encaminhou-nos de modo mais objetivo para a última etapa da criação.




Ainda antes do verão iniciar, eu e o Valentim voltámos a reunir-nos para ultimar pormenores sobre a conclusão do projeto. Percebemos aí que conseguiríamos garantir as condições para agendar duas apresentações físicas: não no formato que tínhamos pensado inicialmente, mas num mais próximo do concerto multimédia (mais simples, com projeção vídeo e música tocada em tempo real). Decidimos também, nesse momento, construir uma “morada” para o projeto: um website onde alojássemos o objeto digital final e onde ancorássemos registos dos cerca de dois anos e meio de trabalho desenvolvido.
Retorno teve, assim, primeiro, uma estreia física nos dias 27 e 30 de novembro, em Arganil e Coimbra, respectivamente. Nos dois palcos por onde passámos – o do Auditório da Cerâmica Arganilense e o do Teatro da Cerca de São Bernardo – estivemos eu e a Inês; o Tiago acompanhou-nos fora do palco processando e fazendo o design de som e o Valentim, na régie, ficou responsável pela projeção vídeo. Praticamente dois anos e meio depois do início do projeto, e ainda que num formato bem distinto do idealizado inicialmente, Retorno foi apresentado no território que se propôs retratar, para os seus habitantes, num importante e emotivo momento de partilha.




Tem agora a sua “morada” neste website. Por aqui vai ficar para todos/as os/as que queiram regressar (mesmo que pela primeira vez) às memórias da efeméride dos incêndios de 2017 e aos lugares transformados pelo fogo.
Janeiro de 2022
Inês Luzio